terça-feira, 7 de agosto de 2012

Dia 7 - Linhas e arcos

Passar um dia a bordo deste cargueiro, ajeitado ao transporte de passageiros, pode tornar-se monótono. Logo cedo, no início do dia, percorro minuciosamente o barco mas percebo que não chegará para o preencher. De seguida, atiro-me à leitura de The Boarding House e, quando termino, receio não vir a encontrar a bordo nada que se relacione com este anúncio feito por uma mãe a um homem de que deverá casar com a sua filha. Para além disso, decido que desta vez não me irei socorrer de James, nem de Eveline.

Que poderá haver de anúncio neste barco? Sei que o capitão fará amanhã de manhã o anúncio da atracagem ao porto de destino. Mas essa é uma chegada anunciada. Peço auxílio a um livro de Madonas do renascimento que começo a folhear. Prende-me a atenção um quadro de Botticelli sobre a anunciação do arcanjo Gabriel a Maria. Maria, extremamente bela, estende a mão na direção da mão de Gabriel. Ambos têm as mãos abertas que não se tocam. O arcanjo Gabriel está de joelhos e podem-se identificar dois retângulos dispostos diagonalmente que marcam a distância entre Maria e Gabriel. Um retângulo é formado pelos braços estendidos e as cabeças, o outro, mais pequeno e dentro do primeiro, pelas mãos de dedos abertos, palma frente a palma. Estes dois retângulos estabelecem uma tensão na distância entre as duas figuras.

Com reduzida esperança de encontrar dentro do barco, neste dia, e no limitado tempo em que cá estou, algo do anúncio que Joyce descreve, também tenho dúvidas de vir a reconhecer alguma forma de anunciação de Botticelli. Não que não possa haver mulheres belas a bordo para representarem o seu papel, sei que o passar do tempo neste lugar fechado se encarregará que isso aconteça. Agora a complexidade, quer da estrutura narrativa de Joyce, quer da significação de Botticelli, serão difíceis de reconstruir nesta amálgama de ferro fumegante e ronronante.

Assim, retorno ao mais simples, às figuras geométricas. Não pretendendo transformar os passageiros, os quais desconheço, em personagens, prefiro ficar pelas figuras geométricas que vão formando, especialmente sempre que se encontrem junto à borda do navio, quando têm a paisagem como fundo e se torna mais fácil geometrizá-los.

Sento-me num banco no convés e observo um casal jovem. Ela forma um arco que alterna entre o concavo e o convexo na direcção dele. Ele, primeiro uma simples linha, vai transformando-se num arco cada vez mais pronunciado na direção dela. Formam por alguns instantes duas circunferências concêntricas e separam-se. Ela já lá não está e a parte superior da linha que o forma começa a girar presa pela ponta ao chão, formando um cone invertido. Aproxima-se uma mulher mais velha. É uma linha grossa e curta. Algumas pessoas que se colocam à frente não me deixam ver mais, mas Joyce também não conta.

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